segunda-feira, 14 de março de 2011

14 - Lavando a honra com sangue

__Por mais difícil que seja, não pode desistir da vida...
__Vá embora!
__Não. Somos amigos. Precisa falar sobre o que aconteceu.
__Com que cara vou encarar as pessoas daqui para frente, os amigos, minha mãe...
__À merda Joca! Reaja! Sabe, isso não é o fim do mundo. Um merda de um bandido, um maníaco idiota,  faz essa cagada com você e por isso tenta se matar...E seus amigos? E sua família, sua mãe que te ama? Pare de dizer bobeiras.
__Diz isso por que não é contigo que aconteceu...
__Vou te contar uma coisa. Só para que veja que não é o fim do mundo isso que te aconteceu. Sabe o Batista?
__Deixa de me enrolar. Nada que me contar vai apagar isso...Joca apontou para algumas manchas roxas no seu pescoço.Nada que diga vai apagar o que trago aqui. Apontou para sua cabeça. Vou levar a imagem daquele filha da puta e suas mãos sujas o resto da vida na minha mente. Como vou me olhar no espelho?
__Eu estou lutando por um sentimento que ninguém aprova. Vou dizer, mesmo que não adiante nada para você, eu vou te contar. Eu sinto por Batista um carinho especial. Algo que nunca senti por mulher alguma.
__Saia daqui!
__É sério! Estou me abrindo com você! Escute primeiro.Depois você faz o que quiser, está bem?
__Está me dizendo que ama o Batista? Que é gay? Acha que mentindo vai me fazer aceitar o que aconteceu?
__Não é mentira! Juro pela minha mãe! Jamais iria falar disso com quem quer que seja...Mas você quer morrer. O que acha que senti quando o carcereiro me contou que cortou os pulsos?
__Continue...
__Está vendo? Só de pensar nisso sinto calafrios. Marcos estava vermelho de vergonha. Eu estou apaixonado pelo meu melhor amigo, mas não aceito. Não admito nem pensar no assunto.E não aceito que me chame de gay.
__Ele sabe disso?
__Não cara! Só você sabe agora. Entende por que te contei isso? Para que veja que não é a única pessoa que tem problemas. Eu me sinto uma aberração quando lembro de todas as noites que passei fantasiando que estava...Marcos se calou.
__Você sente desejo por Batista?
__O que quero que perceba é que, mesmo não aceitando, mesmo achando uma grande loucura, jamais me mataria por isso. Tente aceitar o que aconteceu com você. Lá fora, as pessoas que realmente importam para você, essas não sabem e se soubessem não se importariam com nada disso. Tem que reagir Joca!
__Mas...E quando eu sair da enfermaria?    Como vou encarar as pessoas? O rapaz da minha cela vai me olhar diferente, todos vão...
__Fica frio. Vou dar um jeito nisso. Prometo. Só quero que prometa que não vai tentar se matar de novo. Joca tinha decidido cortar os pulsos, mas foi flagrado no início. Foi uma sorte o médico entrar bem na hora. Por pouco não tinha partido dessa vida, depois do desgosto de ter sido currado pelo Boca.
Marcos saiu preocupado. Sabia que o amigo tinha razão. Todos o olhariam diferente e o próprio Boca não o deixaria mais em paz. Tinha que fazer algo definitivo para ajudar o amigo.
No mesmo dia pediu ao advogado que entregasse uma carta a sua mãe. Dentro do envelope outro menor, lacrado e endereçado ao Alemão. Na carta que escreveu a sua mãe contou parte do que aconteceu com Joca, disse que levou uma surra, omitindo o abuso. Pediu que entregasse a carta ao Alemão pois Joca corria risco de vida. Disse que apelava para seu lado cristão, que só Alemão poderia ajudar a proteger o amigo.
A mãe sentiu uma grande pena do rapaz, se colocou no lugar da mãe dele, jamais desejaria que alguém machucasse seu filho. Sem hesitar foi até o alto da favela e pediu para falar com o traficante.
Depois de ler atentamente a carta que veio lacrada em seu nome...
__Diga ao seu filho que vou tomar algumas providências. Pode ficar sossegado  que Joca está em boas mãos. Ninguém mais vai aborrecer o menino.
A mulher saiu dali disposta a ir no presídio logo cedo para tranquilizar o filho.



__É. Mais uma que devo ao Alemão. Quando ele decidir me cobrar pelos favores não terei como escapar. Mas tudo pelos amigos.
__Acha que ele vai fazer o que? Joca estava curioso.
__Não sei. O que sei é que mandou você ficar sossegado e acredito nele. Amanhã quando sair daqui  vai  ser de cabeça erguida ok?
Pelo visto Alemão tinha grande força ali dentro. Joca foi transferido para a cela de Marcos.
__Cara! Como conseguiram isso?
__Mexemos uns pauzinhos...
__E o Boca?
__O que é dele está guardado. Marcos respondia as perguntas dos companheiros de cela enquanto procurava o traficante com os olhos. Tinha que tomar cuidado.
__Bom, não sei o que fez, mas seja o que for, fez direito. Boca anda dizendo que você vendeu a alma ao Diabo...
__É mesmo? Bom, se disse isso, então sabe que sua batata está assando. Aliás, acho que está queimando...
__Acha que o Alemão fará algo contra a vida dele? Joca estava curioso com o destino de seu agressor. No fundo a possibilidade de  vê-lo morto o agradava.  Tinha medo de ser pego novamente, preferiria morrer.
__Joca, fica tranquilo, já disse que não vai te incomodar mais.
João se aproximou  da cela e fez um sinal para Marcos, que se dirigiu até ele.
__O que quer?  Estavam no corredor, em alguns instantes soaria o toque de recolher e os carcereiros passariam para trancar as celas.
__Boca quer falar contigo.
__Não tenho nada para falar com ele.
__Ele sabe que é protegido do Alemão. Bom, parece que os dois tem negócios em comum. Ele quer resolver essa situação de uma vez por todas.
__Diga ao Boca que esse assunto já está resolvido. Que foi ele que bancou o traíra tomando a atitude que tomou. Agora que arque com as consequências.
__É sua última palavra?
A campainha tocou e todos entraram nas celas.
__Vá dizer ao seu amigo. Assunto encerrado.


__O que fizeram com você? A mãe de Joca estava em prantos ao ver as marcas no pescoço do filho.
__Isso aqui é o inferno mãe! Não vejo a hora de sair. O advogado não disse se tem alguma previsão?
__Vou perguntar a ele. Mas me conte. O que fizeram contigo, meu filho?
__Foi uma briga. Mas não se preocupe, estou bem.
__E essas marcas no seu pulso?
__Foi uma briga, já disse...
__Acha que sou burra? Foi você que cortou os pulsos assim?
__Mãe. Vamos falar do que realmente importa...
__Eu quero saber.
__Eu perdi a cabeça. Queria ir embora. Fiz uma burrada, foi isso. Não vai acontecer mais.
__Tentou se matar? A mulher estava branca feito cera. O ar parecia fugir.
__Mãe. Droga! Policial! Socorro! Tiveram que levar a mulher até o ambulatório para que fosse examinada. Joca foi levado de volta à cela contra a vontade.
__Fique calmo! Gritar feito um louco não vai adiantar. Quer que te mandem para a solitária?
__Eu não devia ter aceitado a visita de minha mãe. Se algo acontecer com ela não vou me perdoar.
__Não adianta se culpar. Pronto, já conteceu! Agora é esperar que se recupere. Ela é forte, fica frio.
Duas horas depois vieram buscar o rapaz para que falasse com o advogado. Ele lhe disse que sua mãe estava bem e que já tinha retornado para sua casa. Podia dormir tranquilo. O que não sabia é que o homem mentira, a mulher teve uma ameaça de infarto e estava internada numa cliníca perto do presídio. De nada adiantava preocupar o rapaz, afinal não o deixariam sair dali para vê-la. Só era permitido sair com escolta em caso de morte e, se Deus ajudasse, isso não aconteceria.

__É isso mesmo que você ouviu. Jandir, o rapaz que trazia as notícias do mundo do lado de fora do presídio relatou ao rapaz o recado que Alemão tinha mandado.
__Quer que eu mate o Boca? Mas eu nunca matei nem uma mosca...
__É isso ou ele vai continuar impune. O Alemão foi bem categórico: "Dê as condições necessárias para que o rapaz execute o serviço ele mesmo".
__Sabe por que fez isso? Por que não usou um de seus contatos aqui dentro para fazer justiça?
__Parece que Alemão e Boca tem negócios em comum. Ele disse que já conseguiu a palavra do traficante para que nunca mais se aproxime de você e dos seus amigos. Mas, se quiser vingança, terá que fazer com suas próprias mãos.  O carcereiro lhe entregou uma sacolinha com um embrulho dentro. Era uma faca.
__Não pode continuar vivo. Eu não confio nesse cara. Vai acabar pegando Joca novamente.
__Bom. Minha parte eu fiz. Guarde bem essa faca. Depois do serviço pronto deixe ela lá com o presunto. Ah, use a luva que está junto. Depois você some com ela.
__Quando será?
__Daqui dois dias. Eu te aviso. Deixo a sua cela e a dele destrancada. Primeiro preciso inventar um jeito de mandar o companheiro de cela dele para a solitária. Vê se cria coragem. Se for pego o problema é seu. Não me envolva nisso.
__Pode deixar. Obrigada.

__Marcos, não precisa fazer isso. Nunca matou ninguém. deixa para lá. Vamos sair logo daqui.
__Fica frio Joca. Farei o que tem que ser feito. Não se preocupe. Não vou me culpar por matar um verme como aquele.
__Mas será assassinato. Se te pegam vai apodrecer aqui.
__Ninguém vai me pegar, não se preocupe. Alguém vem trancar nossa cela depois do serviço  pronto. Assim ninguém saberá que fui eu.
__Não sei não.
Marcos também estava inseguro, mas não podia deixar o amigo perceber. Se pelo menos pudesse se aconselhar com Batista, fazia  tanto tempo que não se falavam. Durante o tempo que estava preso pode pensar muito na relação dos dois. Tanta coisa perdia a importância agora. A opinião das pessoas há muito não importava mais. Olhando Joca e analisando tudo que tinha passado, via que o sentimento que nutria por Batista não era tão absurdo assim. Afinal, sabia que era correspondido. Que importância teria as convenções sociais, o modo machista com que foi educado, as intolerâncias contra os gays e tudo mais que sempre cultivou? Era tudo tão pequeno perto da experiência de vida que tinha adquirido ali naquele presído. O valor da amizade, Joca que precisava de proteção. Ele sempre lembrava dos irmãos mais novos quando via o medo estampado no olhar do amigo.
Já não sentia mais nojo ao fantasiar um carinho mais íntimo com o amigo que estava lá fora, sabe-se lá fazendo o que...Será que tinha arranjado outra pessoa? Será que tinha voltado a sentir como um hétero?
Muitas dúvidas rondavam sua cabeça. Só uma coisa era certa: se tivesse outra oportunidade com o rapaz, certamente não deixaria escapar. Foda-se a família, os amigos, o pessoal do bairro, o mundo todo! Ia abandonar as mulheres. Finalmente podia admitir que em todas as orgias em sua casa, era seu amigo que desejou ter. E toda vez que o via transando com aquelas cadelas,  ele as machucava de raiva, por saber que elas tinham aquilo que ele mais queria, o prazer sexual que não tinha coragem de buscar.
__Que merda! Marcos pensou alto.
__O que foi?
__Durma Joca. Foi um pesadelo, só isso. Era difícil dizer para o amigo, mas se sentia mal por estar preso. Nunca a liberdade foi tão importante. Precisava resolver sua situação com Batista.Sabia que dificilmente superaria a vergonha de assumir um relacionamento homosexual em público, mas quem sabe o próprio amigo não o ajudaria a enfrentar tudo isso? O fato é que estava disposto a tentar.

No dia seguinte...

__Será hoje a noite.
__Já?
__Sim. Não vá vacilar. Deixo sua cela aberta e coloco um remedinho na água do elemento. Assim dormirá feito um anjinho e não verá quando eu abrir a dele.
__Não quero matar um homem dormindo! Quero que veja.
__Não se preocupe. O remédio é fraquinho. Ele acordará quando você o chamar.
__E o companheiro de cela dele?
__Vou dar uma geral nele hoje e vou encontrar um canivete. Dois dias na solitária o farão pensar sobre isso. Deu uma gargalhada.
___E depois do serviço pronto?
___Volte para sua cela  e limpe suas mãos. Eu tranco a porta.

As horas demoraram para passar naquele dia.
Mais tarde, finalmente chegou a hora decisiva...
__Tem certeza? Não quer desistir?
__Dorme. Se perceberem que está acordado vão desconfiar.
__Boa sorte então. Se cuide! Não vá deixar ele perceber antes da hora...
__Dorme, já disse. Fica calmo.
Como se fosse possível dormir diante do que estava por acontecer...



Próximo Capítulo - Dia   14 de março de 2011
Capítulo VII - Encerrando uma fase ruim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Política de moderação de comentários:
A legislação brasileira prevê a possibilidade de se responsabilizar o blogueiro pelo conteúdo do blog, inclusive quanto a comentários; portanto, o autor deste blog reserva a si o direito de não publicar comentários que firam a lei, a ética ou quaisquer outros princípios da boa convivência.